Apresentação de Pablo Martin do Partido Humanista de Espanha na Universidade de Salamanca (10 de maio de 2013)
Apesar de frequentemente podermos ouvir alusões ao sistema ou à mudança do sistema e de acreditarmos ter um conceito sobre estes termos similar ao dos demais, na verdade, se perguntássemos a outros talvez víssemos que isto não é assim. De facto, poucas pessoas dão uma ideia precisa acerca de “sistema” quando se lhes pergunta. E aqueles que têm efetivamente uma ideia precisa, frequentemente diferem muito entre si.
Geralmente, ao falar de “sistema” as pessoas referem-se a um conjunto de normas e comportamentos das estruturas sociais e políticas que governam a vida das pessoas. Neste momento histórico é já muito claro para quase todo o mundo, que a interdependência dos países é tal que, de uma ou outra forma, este “sistema” é único em todo o planeta. Até aqui quase toda a gente está de acordo e não é habitual aprofundar muito mais.
Claramente isto é insuficiente. Já o facto da uniformidade do sistema em toda a parte deveria levar-nos a questionar como é isto possível. Ou estamos todos de acordo, o que parece difícil, ou então este “sistema” é imposto quer se esteja ou não de acordo. Na verdade, pensamos que se verificam ambas as coisas. É certo que os indivíduos são obrigados a atuar de acordo com umas leis que definem o tipo de sociedade em que vivemos. Também é certo que um tipo de sociedade é mais favorável a uns indivíduos do que a outros. Assim, isto conduz-nos ao facto de um tipo de “sistema” favorecer uns interesses ou valores. Se formos mais específicos, na realidade o sistema obedece a uma certa ordenação de valores, ou seja, a uma escala em que tudo se coloca por ordem de importância, desde o mais ao menos importante. Se definimos o valor “um”, vemos que tudo na construção desse sistema se monta tendo em conta essa referência máxima. Se, tal como nós o vemos, o dinheiro se tivesse instalado como máximo valor neste sistema, o governo, a justiça, a ciência… tudo se orientaria no seu funcionamento tendo isso em conta como principal referência.
O sistema, além disso, define-se pela metodologia que utiliza para estabelecer o seu valor primário no todo social. Entendemos que o sistema recorre à violência quando não pode impor o seu valor por meios mais fáceis. Estas duas características, o dinheiro como valor central e a violência como metodologia de ação, são a essência do sistema, não só no seu comportamento individual e coletivo, mas derivando delas ainda uma direção, uma visão do mundo, uma moral, uma mentalidade, etc.
Face ao momento histórico que nos coube viver, onde no campo do conhecimento se dá primazia a uma visão analítica sem fomentar as ideias de processo e de síntese, é muito comum pensar ingenuamente que os diferentes planos da vida humana são realidades independentes entre si, ou seja, com frequência analisa-se a realidade política, vêem-se os problemas e afirma-se que mudando estas ou aquelas leis estes problemas se solucionariam. Como dizia antes, esse é um ponto de vista muito ingénuo, essas soluções só seriam possíveis se falássemos de pontos muito superficiais e secundários que não afetassem a essência do jogo político, os interesses do “sistema”. Por exemplo, talvez pudessem avançar algumas leis que regulassem um pouco a construção de habitações. Mas é claro que aqueles que procuram o seu enriquecimento rápido e a todo o custo manteriam a sua posição independentemente do ordenamento jurídico ou administrativo. Encontrariam a maneira de retorcer a lei a seu favor ou simplesmente de a ignorar e para tal contariam com as cumplicidades necessárias dentro das estruturas de governo. Se a quantidade de mudanças secundárias que se fizesse fosse de tal ordem que afetasse a essência do sistema, por exemplo, se um governo decidisse criar um conjunto de leis que determinasse que, no que respeita à habitação, o valor central não seria o dinheiro, mas sim que todos os cidadãos têm o direito à habitação e que o estado o iria garantir acima de qualquer outra consideração; se isto acontecesse e se se pretendesse mudar a situação atuando unicamente no plano político, veríamos como todos os recursos do sistema se poriam em riste negando qualquer possibilidade de mudança nessa direção. Os bancos ameaçariam com bancarrotas, os investidores com descapitalização, as empresas com despedimentos e a coisa não ficaria por aí, as famílias que compraram a sua casa e contam com ela como um depósito das suas poupanças não estariam de acordo porque, ao generalizar-se a propriedade, o seu bem perderia valor; aqueles que compraram a sua casa a um preço e que estão a pagar a hipoteca relativa àquele preço também se negariam a que outros pudessem ter uma habitação com um esforço inferior ao que eles fazem, ainda que isso implique que fiquem na rua. Enfim, este suposto governo apenas contaria com aqueles que nem têm casa, nem meios para a obter, ou seja, uma minoria marginal insuficiente para impulsionar essa mudança. Ou seja, nenhuma mudança essencial do sistema poderá fazer-se unicamente desde o plano político.
O anterior parece evidente mas apesar disso é frequentemente esquecido. Uma mudança essencial do sistema deverá abordar-se simultaneamente em todos os planos: político, social, cultural, económico, local, familiar e pessoal.
É evidente que tal mudança necessitará de uma transformação jurídica geral que questione o seu próprio valor central, os seus procedimentos, o valor da lei, o valor das penas, a direção da reabilitação, os procedimentos coercivos, a proteção de todos, etc, etc.
Mas, além disso e ao mesmo tempo, estas medidas necessariamente deveriam apoiar-se numa profunda revolução social em que o povo recupera verdadeiramente a soberania e modifica a sua participação na vida pública e os seus mecanismos de representação. Passaríamos assim de uma democracia formal a uma democracia real.
Mas como seria isto possível numa sociedade como a atual, com a atitude pessoal, as aspirações, a mentalidade do Homem médio? É claro que uma mudança de sistema requer uma profunda transformação na consciência das pessoas. O individuo deverá ter a experiencia de fracasso deste sistema e do seu próprio fracasso pessoal para que a possibilidade de criar algo novo comece a ter espaço na sua consciência. Sinceramente acredito que isto ainda não é assim. Claro que há muita gente que está a sofrer as injustiças desta sociedade e ansiaria mudar. Alguns deles são crentes convictos no sistema aspirando unicamente a “colocarem-se” melhor, numa posição mais vantajosa. Outros realmente querem mudanças, mas referidas apenas às injustiças que a eles lhes afectam. Também existem os que imaginam mudanças no sistema, mas acreditam ingenuamente que poderão fazê-lo sem tocar a essência do mesmo ou atuando simplesmente no campo que lhes está mais próximo. Por último, acredito que cada vez são mais os que se dão conta de que uma mudança de “sistema” implica uma profunda revolução que, começando na sua própria vida, nas suas aspirações, nas suas ideias, nos seus sentimentos e no seu comportamento, transforma a sua relação com os que os rodeiam e junto com eles abordam um projeto de transformação social. Esta é a posição defendida pelo Partido Humanista. Pensamos que não é possível consertar um sistema que segue uma direção de descomposição e que a única saída possível será uma revolução política, social, cultural e pessoal. Uma revolução que implique uma mudança profunda de paradigmas onde o ser humano seja o valor central. Uma revolução que assuma a metodologia da não-violência ativa, não apenas por motivos práticos, mas por coerência com um novo sentido na vida das pessoas.
Certamente este mesmo Congresso reúne organizações e pessoas que sustentam diferentes pontos de vista em relação à situação atual. Penso que certamente une a maioria dos aqui presentes uma atitude de denúncia de uma situação que repudiamos e a procura de soluções para os problemas das pessoas; no entanto, é possível que tenhamos diferentes perspetivas e ainda que coincidamos sobre a ação conjuntural talvez as possíveis direções de futuro que contemplemos sejam diferentes.
O que fazer neste momento? Acredito que é bom o que une as pessoas e mau o que as separa. Assim, as minhas propostas para este congresso são:
- Discutir em profundidade e com liberdade interna, sem ficar preso aos detalhes secundários, acerca do tipo de sociedade que queremos construir e do futuro que estamos dispostos a criar com um olhar integral e sem a ingenuidade, os preconceitos e a estreiteza de olhar próprios de um momento histórico que já passou;
- Fomentar ações conjuntas na base social, na rua, na universidade, nos bairros, de denúncia das injustiças deste sistema ao mesmo tempo que vamos reconstruindo relações e um tecido humano muito deteriorado atualmente;
- Consideramos que a nossa diversidade de ideias e pontos de vista é uma riqueza e que uma tentativa uniformizadora, por exemplo, uma candidatura única a eleições deve ser contemplada com muita precaução, ao mesmo tempo que apoiamos decididamente a colaboração e a participação em múltiplas atividades que possam ir desembocando num movimento social amplo e diverso.
Agradecemos aos organizadores deste congresso pelo seu generoso trabalho e agradecemos a oportunidade de participar e continuar a trabalhar nesta iniciativa. Por último, uma palavra de ânimo para aqueles que possam sentir que a tarefa que temos pela frente é demasiado grande ou demasiado difícil. A História, essa velha ardilosa, sempre atarefada cozinhando no seu panelão os anseios do Homem, há algum tempo que dá sinais de estar farta de continuar a mexer o mesmo cozinhado. Acredito, então, que nos deveríamos preparar para mudanças muito profundas, pois já se sabe que uma vez que a velha se lança, não se detém com ninharias.