Aproveitando este décimo aniversário da fundação da Internacional Humanista, gostaria de fazer algumas reflexões sobre três pontos:
1. uma breve retrospectiva destes dez anos, atentando sobretudo à orientação da acção da Internacional durante este período;
2. a situação actual dos direitos humanos;
3. a formação das estruturas regionais como passo no processo de construção da nação humana universal proposta em Florença.
Imediatamente depois da formação dos partidos humanistas em vários países do mundo, a partir de 1984, manifestou-se no campo político a visão internacionalista do Novo Humanismo.
Há exactamente dez anos concluía-se o 1º Congresso da Internacional Humanista e nos seus estatutos lia-se:
“Os Partidos Humanistas subscritores, representados pelas suas delegações em Assembleia celebrada em Florença, com data de 7 de Janeiro de 1989, resolveram instituír um organismo de coordenação, com o nome de Internacional Humanista, que, sem intervir nos assuntos internos dos países e partidos representados, será concentrador e distribuidor da informação entre os partidos humanistas membros. Terá também a função de difundir o pensamento e a acção humanista no mundo, bem como a promoção e o desenvolvimento da solidariedade internacional entre os povos na luta pela sua libertação política, económica e social.
Para essas finalidades, a Internacional Humanista deverá persuadir e influír em todas as instâncias políticas, sociais e culturais, tomando posição definida em assuntos internacionais afectos aos seus interesses.”
A atenção da Internacional foi atraída de imediato pelas transformações profundas que naquele momento convulsionavam o equilíbrio político, económico e militar existente desde o último conflito mundial e que se produzia em conexão com o lançamento da perestroika e da glasnost.
Delegações da Internacional Humanista viajaram a Moscovo, a Leninegrado, à ex-Jugoslávia, à ex-Checoslováquia e a outros países do Leste europeu para estudar a coincidência ideológica com as aspirações que se manifestavam nesse novo processo de abertura. Estas viagens levaram à formação do Clube Humanista de Moscovo, que permitiu nestes anos uma ampla difusão e presença numa área geográfica que até àquele momento tinha permanecido ausente no processo de construção iniciado pelo Movimento Humanista.
Uma grande contributo de acção e elaboração foi protagonizado por diversos sectores da Academia das Ciências da Rússia sob a coordenação do Professor Boris Koval, Presidente do Clube Humanista de Moscovo e Vice-Presidente da Internacional.
Por outro lado, a Internacional olhava para África, onde o Presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda, tinha proclamado a sua concepção do humanismo africano. Uma delegação da Internacional encontrou-se com ele em Lusaka para explorar os temas do fim do apartheid na África do Sul, da convocação de eleições livres e do estabelecimento e expansão do humanismo em África.
Em 1991, o Presidente Kaunda convocou eleições democráticas, tendo o seu partido passado depois para a oposição. O estabelecimento de uma ditadura por parte do novo regime, o encarceramento do ex-presidente e a perseguição do U.N.I.P. e dos demais partidos democráticos levou em anos recentes a uma activa participação da Internacional na Zâmbia, sob a coordenação de Frances Zaloumis, Vice-Presidente da U.N.I.P. e Vice-Presidente da Internacional.
Desde então, o Movimento Humanista desenvolveu-se noutros países de África: Senegal, Mali, Togo, Costa do Marfim, Benim, Burkina Faso, Ilhas Comores, Camarões, Gana, Níger e Marrocos.
A comprovação das enormes implicações da crise política nos mais diversos campos da cultura e da acção humana induziu os partidos aderentes à Internacional Humanista, reunidos em 1993, no seu segundo Congresso em Moscovo, a ampliar o âmbito da discussão e da proposta da revolução humanista a outros campos além do estritamente político.
Assim, foi organizado, imediatamente a seguir ao Congresso, o primeiro Fórum Humanista em Moscovo; depois na Cidade do México em 199;4 e posteriormente em Santiago do Chile em 1995, todos com ampla participação de forças políticas, sociais, sindicais e culturais.
Como resultado das alterações estatutárias desse segundo congresso, além dos partidos humanistas, hoje são membros da Internacional outros partidos políticos, frentes estudantis, organizações sindicais, organizações de promoção e defesa dos direitos humanos e ONG’s, que trabalham na direcção humanista.
Em síntese, nestes anos, a influência da Internacional no planeta foi-se ampliando e foram-se consolidando, ao mesmo tempo, o seu ideário e os seus mecanismos de coordenação, graças à acção da base do Movimento Humanista nos diversos países.
Hoje, estamos em condições de passar a uma nova etapa.
Com referência ao segundo ponto, o tema dos direitos humanos, nos nossos documentos fundacionais, lê-se:
“A Internacional Humanista faz seu o documento conhecido como “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, aprovado a 10 de Dezembro de 1948 pelas Nações Unidas. Observa que apesar do tempo decorrido desde a sua proclamação até ao dia de hoje, a letra e o espírito desse texto são resgatáveis. Esta aceitação não implica o acordo total com a concepção filosófica do ser humano e da sociedade que está subjacente a essa Declaração”.
Nestes anos, foram numerosas as situações de violação e negação dos direitos humanos e a Internacional não deixou de fazer sentir a sua voz nessas situações, por meio de campanhas de denúncia junto dos meios de imprensa internacional, fazendo pressão directa sobre os governos e por meio da acção dos partidos e organizações membros nos diversos países.
Quero recordar, apenas dos últimos anos, o protesto internacional contra as experiências nucleares em Muroroa; a campanha de denúncia do massacre de indígenas em Chiapas; as manifestações contra a ameaça de ataque anglo-americano contra o Iraque em Fevereiro de 1998 e a condenação do actual ataque; a mobilização internacional contra o racismo crescente na Europa que culminou com a manifestação anti-racista em Roma em 1996, apoiada pelos partidos humanistas europeus.
É certo que toda esta acção não teria sido possível sem o trabalho entusiástico de milhares e milhares de humanistas organizados nos bairros, nas universidades, nos locais de trabalho; sem os protestos, as marchas e as manifestações organizados por eles; sem a potência da sua denúncia através da sua acção e dos seus próprios meios informativos: jornais locais, revistas, boletins, rádios, estações de televisão.
Este ano celebra-se o cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem: estes cinquenta anos foram de intensidade comparável a muitos séculos de História. O potencial da humanidade aumentou de modo determinante para podermos passar hoje a um novo projecto no qual os direitos proclamados tenham realmente carácter universal.
O nosso desacordo com a concepção filosófica da Declaração Universal dos Direitos do Homem, atrás mencionado, precisou-se durante o Congresso em Moscovo em 1993 e diz respeito à falta de universalidade que essa declaração tem na sua concepção de tais direitos. Por exemplo, limitam-se os direitos “económicos” às condições de cada país e limita-se a liberdade de movimento das pessoas aos limites do território nacional.
É evidente que esta associação da liberdade e dignidade humanas com um facto totalmente casual, que não corresponde à escolha do indivíduo, como é nascer num território em vez de outro, era compreensível em 1948, no fim de um conflito mundial que tinha visto crimes horrendos e a negação da vida humana nos termos mais brutais que se possam conceber. Mas hoje, no actual contexto internacional e no imparável processo de mundialização em marcha, esta associação é já inaceitável.
Nesse sentido, a Internacional considerou um sinal positivo e um passo evolutivo dentro do direito internacional a possibilidade de processar o General Pinochet por violações de direitos individuais e crimes cometidos durante a sua ocupação do poder, independentemente do país onde estes crimes se cometeram. Se se abriu caminho a uma nova concepção da justiça civil e do direito civil, dentro da qual as fronteiras já não constituem um obstáculo ao reconhecimento dos direitos individuais, nem à circulação do capital internacional, por que razão se haveria de pôr barreiras à defesa e à promoção dos direitos humanos?
Em terceiro lugar, a formação da regional latino-americana representa um passo fundamental na realização do projecto lançado em Florença há dez anos. No discurso pronunciado após a sua eleição como primeiro Presidente da Internacional, Alfonso Argiolas disse:
“Um povo que esteja em situação de aumentar o seu poder real (não intermediado pelo Estado nem pelo poder de minorias), estará na melhor condição para se projectar para o futuro como vanguarda da nação humana universal. Os partidos humanistas em cada lugar lutam por este ideal: que o seu país se converta em vanguarda da nação humana universal.”
A apenas dez anos de distância, estamos contudo numa situação muito diferente. Face ao processo de mundialização, indubitavelmente em marcha, não basta a humanização de um país. A acção humanizadora tem que acompanhar o processo histórico, para que a regionalização não seja simplesmente um processo de integração de mercados ao serviço do grande capital financeiro internacional, mas sim, além disso, uma integração de direitos e liberdades, uma integração de instituições políticas e sociais, e uma aproximação entre povos e culturas, dando desta maneira lugar a uma verdadeira identidade regional, que se enriqueça com as diferenças culturais, étnicas e religiosas, e que se caracterize pelo progressivo avanço do poder decisório do povo. Só assim, “… a integração das diversas comunidades será também vanguarda de integração da nação humana em desenvolvimento” (Silo: “Humanizar a Terra”).
Os partidos humanistas da América Latina têm trabalhado intensamente, chegando a ter uma presença importante no panorama político e social dos seus respectivos países, particularmente na Argentina e no Chile, marcando estilos de conduta e exemplos de coerência desconhecidos no panorama político actual.
Estando no Chile, não se pode evitar mencionar o contributo da primeira deputada humanista, Laura Rodríguez, a sua acção e a sua cálida relação com as pessoas.
Os partidos humanistas da América Latina estão hoje em condições de lançar um projecto comum e de assumir um compromisso conjunto para a construção de uma sociedade plenamente humana. Isto tem, além do mais, grande importância como estímulo para a formação da regional europeia, que constituiremos no próximo mês de Julho em Madrid, e para a organização da regional africana, que esperamos constituír também durante este ano.
Queria finalmente sublinhar como tanto a acção política da Internacional Humanista como a sua progressiva qualificação na análise dos acontecimentos e dos processos históricos, de crítica e de proposta, tem encontrado uma inspiração permanente na poderosa contribuição ideológica de Silo. Ele tem alimentado nestes dez anos a nossa reflexão e tem contribuído para o desenvolvimento e a coerência da nossa acção.(…)
Loredana Cici
Santiago de Chile, 7 de Janeiro de 1999